e o verso dessa bula de remédio serve como diário de bordo para quem queria viver com a cabeça enfiada num buraco tal qual um avestruz daqueles de um cartoon

A gente vai crescendo enquanto eles ensinam em todo canto que basta tentar e fazer o seu melhor e a vida vai te sorrir de volta. Então a minha vida é sem dentes. Vida onde ninguém me disse que eu controlaria tanto o meu futuro quanto percebo o tom da minha voz. Que eu precisaria de anos de remédios para dar conta de não ser feliz e entender minimamente bem que maior parte disso não é minha culpa. E que me olhariam tão feio e torto, me colocariam um rótulo e me deixariam tão confuso que até hoje não sei se foi o autismo, a sexualidade ou o tom da minha cor. Verdade é que ninguém me disse que se eu superasse sozinho a dor da vida adolescente, ganharia como prêmio na vida adulta dar o meu melhor em tudo e não dar conta de pagar as contas no fim de todo maldito mês. Que a vida me condenaria a ficar distante de todas as pessoas que conseguiram me amar de volta sem reclamar da minha necessidade de falar de tudo e continuar sozinho. E é só isso. Faziam seis meses que não chorava, bastou um dia sem remédios para que percebesse que não faço ideia de onde tiro forças, e que apesar de muito forte, isso não vale muito mais que um tapinha nas costas. E que a vida é isso, ser inteiramente contaminado por tudo que me fizeram e ainda ouvir que é meu pensamento negativo que faz com que eu nunca me sinta bem. E não, eu sei que não vai ficar bem. Mas na falta da opção de nunca ter nascido eu sei como vivo, sei que sou inteligente e que amanhã vou inventar mais alguma coisa, me fechar em outras dez obsessões até que eu me canse de todas essas coisas. No fim do dia, faz mais de anos que eu não sei o que quer dizer felicidade, assim, na prática. Mas talvez um dia, nesses coloridos como comercial do Banco do Brasil ou em cartaz de sarau em universidade pública eu acabe fingindo que basta esse tapinha nas costas e tudo bem. Que basta aplaudir um sol enquanto a vida só sabe socar o meu estômago, enfim.

"o mundo vai se ocupar com seu cifrão, dizendo que a miséria é quem carecia de atenção"