um pequeno conto no final do mundo

Dune, Moebius

O trigésimo sexto ano de pandemia acabou sendo o pior. Não haviam mais cadáveres espalhados pela rua, insegurança política, ausência de moeda vigente ou medo de sair da cama, mas havia a sensação iminente de vazio. Mesmo diante do horror, o ser humano transforma a sobrevivência em propósito, fazendo com que o próprio caos seja parte necessária da auto justificação. Sem isso, restaria o suicídio, e no trigésimo sexto ano até os suicidas estavam cansados. Niméia não tinha um nome comum, não tinha pais biológicos ou se lembrava deles, foi criada por um casal de rapazes num bunker. Nasceu no primeiro ano da pandemia, tem todos esses cuidados e paranoias cotidianas como o normal, e talvez por isso permaneça desconfiada sobre a cura. O horror é a única vida que Niméia conhece em seus trinta e seis anos de horror. Seus pais, Jorge, um médico, e Lucas, um padeiro, sempre fizeram o possível para que se sentisse amada e segura, e agora, já idosos, nutrem um sentimento de insegurança sobre o que puderam ofertar a filha nesses anos difíceis. Por mais que não tenhamos controle dos rumos do mundo, pais tendem a achar que poderiam ter evitado catástrofes com palavras mais amorosas - um efeito borboleta, talvez. Lembro que antes de tudo eu não pensava em ser escritor, era um jovem terapeuta perdido no fim do mundo. Agora, velho e cansado, essas palavras e relatos me fazem todo o sentido. E quando tomo Niméia em meus braços sinto que não havia nada importante antes do horror. O importante, caros leitores ou desavisados, o importante é sempre o agora. É quando a gente, enfim, respira.

Comentários

Postagens mais visitadas