O ano novo de ontem
Olho para a xícara e me
misturo ao seu conteúdo. Café preto, quente, amargo. Servido numa xícara branca, nas mãos gordas de um pobre rapaz. Seria eu um pobre rapaz? Seria justa a
comparação com os gigantes? Incógnita. Não tive a saúde certa, a família certa com a fortuna
certa, sequer a cor certa, mas esse esforço de sobrevivência que não me falta, há de esvair pela fresta já janela. Existe mundo lá fora? Sorrisos brancos? Orgulho
de um pai? Existe é o trabalho de uma mãe cansada. Uma avó louca, uma irmã
adolescente, o cachorro, melhor companhia. Isso é família, cuja história dos
genes se mistura à minha, cuja história social me determina, herdando
qualidades, erros, acertos, angústias. Família é compartilhada e nenhum de nós
teve um berço chique, um mecenas ou galinha dos ovos de ouro. Por isso os olhos tristes e castanhos. Por isso a angústia, que me
enlouquece. O nosso fardo foi sempre o de sobrevivente. E o elogio, ele só vem
depois que o desgaste não nos permite gozar mais nada. Então a gente levanta,
anda, vive, se mistura ao café e, com sorte, morre no papel. Como o verso mais
digno que um pobre coitado pode escrever. E ele pode. Pois a gente é tudo que há, é tudo
que resta. Sempre. Café preto e quente. Mas o olho aqui é meu.

Comentários
Postar um comentário