um pequenino conto mal acabado sobre lugar nenhum

 

Fazia uma bela manhã na rua montes clarinhos. Crianças brincavam de taco, idosas fofocavam sobre os amantes do padre, garis dançantes seguiam um caminhão de lixo que tocava um funk. Não havia nada de novo. Dona Lucena, velha benzedeira e paranoica, rezava um terço solitário para que nada mudasse e a paz ainda fosse um marco característico daquela bela ruazinha formada por paralelepípedos perfeitamente alinhados e calçadas limpinhas. Todos os moradores vinham de gerações e até mesmo os animais sem dono que perambulavam por lá eram sempre os mesmos. Parecia um mundo particular. Mas nesse dia alguém não saiu para comprar o pão, e a vizinha que passeava religiosamente com seu cão às 19 horas disse a si mesma que ali na casa 37 não havia uma luz acesa há mais de semana. Ali vivia Bruno, tinha pouco mais de 30 e já não lhe restavam parentes, era muito educado, trabalhava de casa, algo pelo computador, não se casou e nem tinha romances - até o que se sabe, nem gato tinha. Na rua era quase sempre o quebra galho das idosas e mães solteiras sem habilidades manuais. Apesar de descrito como nerd, era bom em consertar cadeiras, mesas, chuveiros e uma vez desmontou o encanamento inteiro para Dona Josefa. Geralmente acendia suas luzes lá pelas 18 horas, e todos os dias buscava pão e leite às 7 e 30. Menos naquele dia. O seu João gritou, chamou e chamou, mas nada respondeu - Deve ter se mudado, pensou consigo mesmo. Dona Júlia, espiã e boateira, notou roupas no varal que sugerem presença, mas alertada por Guilhermina, soube que estavam daquela mesma maneira há dias. Também não ouviram música, que era recorrente em algum momento entre as 12 e as 16. Chamaram os bombeiros que invadiram a casa, nada encontraram, mas teima o Seu Gilberto que sequer verificaram o porão cuja porta estava trancada. Mas como ele sabia que estava trancada? Muito se perguntou e nada se fez. E os dias passaram, fazendo com que mesmo quem se lembrassem não dedicasse mais tempo a isso. Ninguém mais entrou na casa, que aos poucos se encheu de mato e ganhou um ar de abandonada. Não se sabe de Bruno, mas se sabe que o padeiro ainda vende pão e a vizinha ainda passeia todo dia às 19. Não se sabe se morreu ou fugiu, mas os gatos, morcegos e pássaros festejam um lar só deles. E a rua continua bonita e a casa, agora feia, compõe a beleza daquela doce ficção.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas