obituário de alguém

 


Nadou e morreu na praia. Nadou pela vida. Diziam que quando escrevia era tão profundo quanto um suíço, mas quando falava era tão simplório como um matuto norte mineiro. João gostava das coisas da rua, dos vizinhos idosos e mentirosos, dos pés de manga e até de pitanga, também das flores diversas que enfeitavam algumas casas. Gostava dos cachorros, os alimentava e fazia deles seus melhores amigos. Sentia-se cão, mas não um cão-andaluz.

Houve um tempo em que João, ainda quase um menino, se disfarçou de soldado romano numa destas apresentações em sexta-feira da paixão. Aproveitou e deu umas boas bordoadas no pai ausente, que naquele dia convenientemente atuou como Jesus. Foi um gozo do herege, ainda que seja pueril ou perene, caso não seja um gozo e sim um atributo de não ser cristão. No fim das contas a relação se manteve incólume.

- Algo força a maçaneta da porta. No notebook toca You've Got to Learn da Nina Simone. Sempre que falo dos outros pareço falar de mim. Eram só as cachorras.

Enfim, lembro que descíamos todos os dias a grande ladeira da Avenida JK que era onde ficava a escola. Falávamos sobre futebol, ora sobre garotas ou animação japonesa. Eu nunca fui bom em manter certos tipos de amigos, mas João gostava de ser sozinho, e numa dessas arrumou mil brigas só para ficar em casa suspenso lendo gibis e assistindo a desenhos. Era aquilo que eu invejava. Havia energia, coragem, ousadia, tudo que eu não tinha o João exacerbava. Eu exacerbava solidão e estranheza.

Não lembro quando e nem por qual razão me afastei. Foi quando me aproximei de pessoas na internet e mais ainda de mim. Não sei por onde andou o João até agora, em que li numa rede social que João morreu na praia. Morreu enquanto tentava chegar a algo. Pobre João. – Fiquei feliz por ter descoberto meu lugar dentro de mim. Onde é quente e seguro e nem precisei aprender a nadar. João nadava.

Parece que de todas as ficções que construímos, a mais diversa e complexa acaba reduzida num conceito de “eu”, um tipo de redução necessária. Quando diminuímos a complexidade as coisas elas encontram seu lugar. Como numa Navalha de Ockham existencial. Ou ficamos seguros na circunstância e no absurdo ou morremos de tanto nadar até chegar numa ideia de praia. Enfim, me desculpe, João. Felizmente e de verdade eu nunca gostei de navegar.

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