fundação

A escola nos anos noventa, a rua de terra, a casa caindo aos pedaços, o convívio com a loucura e o alcoolismo, o isolamento na sala de aula, a dificuldade de me concentrar, as crianças me batendo na escola, os adultos zombando de mim, a família despedaçada, o sujeito homem que me abusou, a tristeza mais profunda que a vontade de estar vivo, o sentimento de estar deslocado, a depressão, o medo, os garotos que me abusaram, a indiferença com meus versos, os fracassos atrás de fracassos, o medo e também a vontade - de morrer, a fome de amor, o sentimento de estranheza, a indiferença paterna, as mil vezes em que ouvi não, as cem vezes em que apanhei por nada, as poucas vezes em que bati, as mil vezes em que dei o melhor de mim e não bastou - e nunca basta, as vezes em que não tínhamos sequer o que comer. Nada disso fundou meu caráter, pois nada é pior para o caráter ou o intelecto do que a necessidade, o medo, a culpa ou a impossibilidade de ser.
O meu caráter foi fundado numa mãe que acordou cedo e vestiu mal para que eu vestisse melhor, que dividia o almoço em dois para que nunca faltasse janta. O meu caráter foi fundado nos que me abraçaram sem pedir nada em troca, nos que me ofereceram o ombro, o leito, a companhia, nos que me deram alguma esperança, um milhão de sorrisos, pertença. O meu caráter foi fundado em mil livros, nas verdades indigestas, no empirismo cético e nas belas histórias que me permitiram ver no mundo o melhor que ele é, ainda que maior parte se resuma em dor. O meu caráter foi fundado nas minhas escolhas, no que tenho e vivi de bom, nunca nas mil tragédias que sequer tive a opção de escolher ou não. E que ninguém pode ter. O meu caráter é tudo aquilo que não me assombra, mas edifica.