passeio kafkiano pela foz do esgoto


Acordei meio tonto, com a estranha impressão de que não havia dormido. Levei as mãos ao rosto e não senti meu nariz, apalpei minhas bochechas e não senti pele alguma. Levantei a mão aberta a frente do meu rosto e notei que só enxergava um borrão que as pessoas a minha volta não pareciam notar. Ninguém me via mas eu enxergava a todos, até seus pensamentos que saltavam das suas cabeças me confessando pecados, fetiches, crimes e perversões. Assustado, corri para uma igreja pouco frequentada e tentei me comunicar com um jovem padre que ali rezava, sozinho, numa língua desconhecida por mim. Tentei gritar mas não tinha voz, tentei tocar mas não sentia seu corpo, e assim como a Deus ele não podia me ouvir. Procurei então me esconder nos esgotos, mas os ratos também gritavam calados e de alguma forma eu os compreendia. Tentei furar meus tímpanos, mas não havia nada além de cavidades vazias. Tentei me matar saltando de uma ponte, mas ao tocar o chão não sentia nada além de algo que se desmontava e logo em seguite tomava sua forma original. Sentei em silêncio ali no chão, chorar não conseguia, nem mesmo gritar. Pensei que maldição poderia ter me acometido, justo um cético inteligente feito eu. Tentei despertar de um sonho, mas era a realidade. Então fechei meus olhos, fingi que ainda tinha pulmões e senti por um instante o ar passando por mim. Nesse segundo o mundo silenciou, só ouvi minha voz que agora era clara e suave. Cantarolei velhas canções e segui em direção a lugar algum. Não sei o que houve, mas estava feliz. A solidão, o silêncio e o mistério já não me incomodavam mais. Se ainda tivesse dentes, poderia sorrir. O vento agora me acariciava.

Comentários

Postagens mais visitadas