enquanto lavo a louça



Procurei teus quadris em outros quadris, e quando fechei os olhos, ainda ouvia seus passos se arrastando pela casa. Também procurei seus dentes em outras bocas, os lábios, nariz, seios e as piores piadas possíveis. Passei meses te procurando em outros, ansioso e insatisfeito com essa sina de ti que nunca saia de mim. Mas enquanto lavava a louça pensava nos almoços que fizemos juntos, e enquanto lavava o quarto lembrava do chão, das músicas, da minha estranheza constante e sua confusão infantil. E então descansava acordado, pensava nos objetos, na minha psicologia, lembrava dos desafetos e da horrível mania que tinha de anotar tudo que eu dizia ou pensava até que eu devesse ficar em silêncio. Você foi meu mural, colocando minhas falas e crenças como se fossem suas – tanto que quando encheu, foi embora, mas mesmo assim duvido que as citações novas tenham dois centésimos da qualidade das minhas. Sou gajo eloquente. Então enquanto lavo a roupa revivo nos detalhes, em como se sentia traída em Drummond ou roubou meus livros que nunca te disseram nada. Amor desbaratado, de mão única, esse jogo de soma zero em que era eu sozinho contra você. Será que deixou marcas? Que chamo seu nome na cama? Que ainda escuto o bater de quadris? Que sinto falta de sentar na grama ou discutir poesia? Verdade é que não deixou nada, não trouxe nada, e o pouco de bom levou. O tempo levou. A consequência. E enquanto lavo a sala me vem que decepção e amor são como Merthiolate, ao longo dos anos foi deixando de arder. E enquanto termino a faxina a rotina me bate, a tela do celular acende, é notificação. Faxina completa é vida que segue. Toda semana a gente limpa novamente.

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