aos que pensam que larguei meu coração em montes claros

Ainda lembro com carinho a decida sinuosa da rua Allan Kardec, esquina com Bezerra de Menezes, primeiro recanto do meu novo coração. Lembro a velha escola, cheia de crianças-problema e seu excesso de alegria, dos policiais militares vigiando os horários de entrada e saída, dos casais pouco ingênuos que se engoliam na praça ao lado. E eu, eu estava ali, agente passivo, um observador que desfruta os vazios e ausências que habitam em toda a experiência humana. Eu vivo isso. E é que faltaram abraços, diz um pedagogo, é que faltou um relacionamento longo, diz uma amiga, e é que sobrou o que falta nos outros, que ao invés de urgência do mundo, precisou correr atrás de si, e isso quem diz sou eu. Prepotente, enfim. E lembro os tacos de madeira soltando no piso do apartamento, do som que fazia quando Lorena rodava e pulava em seus rompantes de alegria ou raiva, de quando chorava as mágoas com Amanda e Letícia, de quando deus algum me escutava além do meu próprio coração abstrato, ou quando acordava choroso e simplesmente limpava o chão empoeirado, como na esperança de uma autoterapia. É que amigo é para essas coisas, diz o diabo. E verdade seja dita é que nunca deu certo para mim, mas como dizia um Crowley mais lúcido, magia é toda ritualística para a qual atribuímos uma função, assim se coa o café antes de escrever um trabalho, assim se diz até logo para as coisas que nem nunca vieram.  Então mesmo indivíduos como eu, os bobos, céticos, amargos, mesmo os espíritos mais solitários carecem também dessa mágica. De uma experiência de vida árdua, alegre ou nostálgica, definida em si mesma como um solve et coagula. Ou fetiche do tipo, fetiche do tempo. Mas os dias vão continuar a dançar, entre nós e esse ritual de mim. A parte mais difícil do dia é quando lembramos com saudade. Sempre.

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